O 1º Juizado Especial Federal da Subseção Judiciária de Belo Horizonte acolheu o pedido de uma pessoa transexual para o fornecimento de uma medicação para tratamento hormonal contínuo. Com a sentença, a concessão deverá ser feita de forma solidária pela União e pelo estado de Minas Gerais, condicionada à apresentação periódica de relatório médico e receituário atualizado pelo beneficiado.
Em sua defesa, os entes federativos argumentaram que o autor da ação possuía plano de saúde (ao qual poderia recorrer) e não havia comprovado que o remédio era imprescindível para sua saúde. No entanto, recorrendo a um precedente específico do próprio Supremo Tribunal Federal (STF), o magistrado que julgou o caso entendeu que a própria dignidade da pessoa humana, enquanto princípio constitucional, estava em jogo. O julgamento foi realizado no dia 17 de maio, e cabe recurso.
De início, o pedido havia sido feito perante a Justiça estadual, que determinou a inclusão da União, a qual não reconheceu nenhum interesse jurídico no processo. Posteriormente, o estado de Minas Gerais apresentou um recurso junto à 2ª Turma Recursal, e o caso foi recebido definitivamente na Justiça Federal mineira. De sua parte, além de alegar a ausência de provas robustas que garantissem a concessão do remédio à parte, a União amparou-se no Princípio da Reserva do Possível, entendendo que, diante da limitação de recursos públicos para atender toda uma população, nem todo pedido individual no âmbito do direito à saúde poderia ser atendido.
Apesar de reconhecer que o Poder Público se encontrava com frequência em uma encruzilhada entre o dever de concretizar o direito constitucional à saúde aos seus cidadãos e a reconhecida escassez de recursos públicos do próprio Estado brasileiro, o juiz do caso apoiou-se em pressupostos fixados pelos tribunais superiores para sustentar sua decisão. Para tanto, ele citou o entendimento do STF em um recurso apresentado em junho de 2020: “O fato de a autora possuir plano de saúde privado não exime o Poder Público de garantir a qualquer pessoa que dele necessitar o tratamento médico adequado, a fim de preservar-lhe a vida, a teor do que dispõe o art. 196 da Constituição Federal”.
Ao receber o laudo da perícia socioeconômica, o magistrado verificou que o autor da ação possuía uma remuneração mensal líquida menor do que o salário mínimo, o que lhe permitia pagar R$ 64,56 de coparticipação no plano de saúde oferecido pela empresa em que trabalha. Aliado a isso, constatou que ele residia em uma casa sem energia elétrica, na periferia de Belo Horizonte.
“A parte autora depende da medicação indicada pelo médico que a assiste no âmbito do próprio SUS para dar continuidade ao seu tratamento hormonal, sem o qual terá toda sorte de transtornos físicos, sociais e psicológicos em relação à sua condição pessoal de gênero, interferindo de maneira absolutamente negativa em sua qualidade de vida”, concluiu o juiz na sentença, convencido também de que a parte havia sofrido fortes reações alérgicas a outros medicamentos disponíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS), conforme atestado por provas apresentadas pela Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG).
Precedentes importantes
Ao longo de sua decisão, o magistrado apontou diversos posicionamentos relevantes sobre a própria questão da transexualidade nos dias atuais. Nesse sentido, cabe lembrar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) deixou de classificar a condição sexual como transtorno mental em 2019, passando a classificá-la como incongruência de gênero (CID-11), algo defendido há muitos anos por diversos especialistas da área de saúde.
No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio de sua Resolução n.º 2.265/2019, que dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero, em seus artigos 2º e 3º, prevê que “a atenção integral à saúde do transgênero deve contemplar todas as suas necessidades, garantindo o acesso, sem qualquer tipo de discriminação, às atenções básicas, especializada e de urgência e emergência”, sendo que “a assistência médica destinada a promover atenção integral e especializada ao transgênero inclui acolhimento, acompanhamento, procedimentos clínicos, cirúrgicos e pós-cirúrgicos.”
O Ministério da Saúde, por sua vez, por meio da Portaria de Consolidação GM/MS de 2017, instituiu a Política Nacional de Saúde Integral LGBT no âmbito do SUS, com os objetivos de promover a saúde integral da população LGBT+, eliminar a discriminação e o preconceito institucional, e contribuir para a redução das desigualdades dentro da própria rede pública.
Dentro do Poder Judiciário, o tema não passou despercebido, havendo inclusive o atual Presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luís Roberto Barroso, afirmado em 2019 que “privar um indivíduo de viver a sua identidade de gênero significaria privá-lo de uma dimensão fundamental da sua existência”.
Do ponto de vista do Direito Internacional dos direitos humanos, o magistrado mencionou ainda importantes previsões legais como o Pacto de São José da Costa Rica (ao qual o Brasil aderiu), à própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, e aos Princípios de Yogyakarta, publicados em 2006 e complementados em 2017.
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