Justiça Federal confirma propriedade de terras ao Quilombo Marobá

Resumo em Linguagem Simples
  • A Justiça Federal rejeitou pedido da Veracel Celulose S.A. e manteve o reconhecimento da propriedade das terras à comunidade quilombola Marobá dos Teixeiras, localizada em Almenara, no Vale do Jequitinhonha (MG).
  • A sentença destacou que não houve irregularidades no processo de demarcação das terras quilombolas e reforçou a validade da autoidentificação como critério de reconhecimento, conforme já definido pelo STF.
  • O juiz federal Antônio Lúcio Barbosa também ressaltou a ausência de provas técnicas que sustentassem a contestação feita pela empresa.
  • A comunidade foi reconhecida com base em estudos robustos do Incra, que incluíram laudos técnicos, entrevistas com moradores, mapas e assembleias.

A Vara Federal Única da Subseção Judiciária de Teófilo Otoni rejeitou o pedido da empresa Veracel Celulose S.A., que buscava anular atos de um processo administrativo conduzido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Esse processo resultou no reconhecimento da propriedade de terras em favor dos remanescentes do quilombo Marobá dos Teixeiras, situado no município de Almenara, no Vale do Jequitinhonha. A sentença foi proferida pelo juiz federal titular Antônio Lúcio Túlio de Oliveira Barbosa no dia 19 de maio de 2025.

A empresa autora, Veracel Celulose S.A., afirma ser a legítima proprietária das terras onde está localizado o Quilombo Marobá dos Teixeiras. Por isso, pediu a anulação do processo administrativo conduzido pelo Incra, alegando a existência de diversos erros. Entre as principais críticas, destacou supostas irregularidades no laudo antropológico, que, segundo a empresa, teria sido elaborado sem o devido rigor técnico.

O que disse a sentença

O juiz federal titular, Antônio Lúcio Túlio de Oliveira Barbosa, explicou que o ponto central da disputa é a regularidade do processo de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos remanescentes do quilombo Marobá dos Teixeiras.

No processo, a autora pede a anulação do processo administrativo nº 54.170.000671/2009-94, mas não apresenta provas suficientes para contestar a consistência ou a base factual do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), que trata da comunidade quilombola Marobá dos Teixeiras.

Para o juiz, seria necessária a apresentação de uma prova direta de irregularidade no processo. No entanto, a Veracel Celulose S.A. se limitou a apresentar um laudo particular, sem metodologia reconhecida pela antropologia contemporânea. Além disso, o documento baseava-se em uma visão ultrapassada de quilombo como mero refúgio de escravizados fugitivos — uma concepção já superada e rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 3239/DF, que validou o Decreto 4.887/2003 e reconheceu a autoidentificação como critério legítimo para o reconhecimento de comunidades quilombolas.

A sentença destaca que o próprio Ministério Público Federal (MPF) concluiu que o laudo apresentado pela autora não pode ser considerado um contralaudo antropológico. Isso porque o documento não informa o tempo de trabalho de campo, não inclui entrevistas com membros da comunidade, desconsidera a literatura especializada e apresenta conclusões sem base empírica.

Por outro lado, o juiz ressalta que o principal argumento da autora — de que o processo administrativo se baseou apenas em suposições — não se sustenta diante da análise detalhada das provas reunidas pelo Incra. O material inclui a Portaria que instituiu uma equipe multidisciplinar, cronogramas de trabalho, relatórios de campo, entrevistas transcritas com quase todos os moradores e descendentes de quilombolas, atas de assembleias comunitárias, além de mapas georreferenciados com precisão métrica, entre outros documentos.

Ao final, a sentença destaca que a divergência de interpretação dos fatos apresentada pela autora, sem o respaldo de prova técnica adequada, não caracteriza um erro na decisão do processo administrativo. Por isso, o pedido de anulação, sem base jurídica ou fática suficiente, foi rejeitado.

Quilombolas: significados, origens e proteção jurídica

A expressão “comunidade quilombola”, atualmente mais utilizada em textos científicos e na legislação, pressupõe sabermos o sentido das palavras “quilombola” e “quilombo”.

A expressão quilombo, deriva da palavra africana kilombo da língua Mbundo (tronco linguístico Banto, comum em Angola), com significados prováveis de “sociedade”, “povoação”, “união” ou, até mesmo, “exército”. No Brasil colonial, a palavra serviu para designar o local de “refúgio das populações africanas escravizadas” (atualmente, houve revisão científica desta designação, como dito na sentença) que escapavam para áreas de difícil acesso, a fim de resistir à captura e garantir liberdade. Quilombola, assim, é a pessoa que habita o quilombo.

Desse modo, as pessoas que descendem das antigas populações africanas que escapavam do cativeiro para ocuparem os territórios dos quilombos (e que, hoje, reivindicam a titularidade legal destes territórios) são denominados, conforme trecho da sentença, de “remanescentes de quilombolas” (ou “remanescentes das comunidades quilombolas”, dentre outras expressões).

A Constituição Federal de 1988, no art. 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) estabeleceu que “(...) aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.(...)”

Já o Decreto nº 4.887/2003 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.

O artigo 2º do Decreto diz que se consideram remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

O parágrafo 1º deste artigo diz que para as finalidades do Decreto nº 4.887/2003, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.

Por fim, o parágrafo 2º do mesmo artigo estabelece que “(...) são terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural (...)”.

Processo 1000249-34.2018.4.01.3816. Sentença proferida em 19/5/2025.

José Américo Silva Montagnoli

Analista Judiciário

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